Apaixonada por história que sou, sempre me dedico a conhecer detalhes, dos mais enaltecedores aos mais sórdidos, de cada lugar que visito. Já estive em Lisboa muitas vezes e toda vez que retorno à cidade descubro algo novo, algo que mexe comigo e fica como um registro da minha passagem pela cidade naquela viagem. Sempre tem sido assim e desta vez não foi diferente.
Quem caminha pela Baixa Pombalina a admirar suas construções, a observar suas gentes, nem sempre faz ideia de que aquela região foi “palco” de uma verdadeira barbárie em outros tempos. Aqui nesta região aconteceu um dos episódios mais pesados da história de Lisboa e de Portugal e resultou na morte de milhares de inocentes, tudo por causa do fanatismo religioso de alguns e da passividade de outros. Numa altura em que a intolerância religiosa volta a estar na ordem do dia, é importante recordar o massacre de Lisboa de 1506.
Lisboa, Convento de S. Domingos, 19 de Abril de 1506, domingo de Páscoa cristã, três horas da tarde. A peste assolava a capital desde Outubro do ano anterior, situação dramaticamente ampliada pela seca e pela fome. Eram tempos difíceis.
O rei D. Manuel I encontrava-se refugiado em Abrantes. As ruas exibiam os horrores da tragédia. O convento estava repleto de desesperados cristãos – velhos e novos – esperando um sinal divino que acudisse àqueles que não tinham posses ou condições de fuga.
Havia uma crença que um milagre se manifestaria no dia 15 deste mês naquele templo dominicano. A vontade de crer era absurdamente forte entre todos, tanto que nada iria desmentir qualquer sinal, por menor ou inacreditável que fosse.
Foi então que o sinal implorado com toda a convicção aconteceu. Uma luz brilhou, incandescente, no crucifixo da capela da Igreja. Todos viram. Todos rejubilaram. Todos se sentiram recompensados pela crença profunda e sincera. Todos? Não. Na verdade, houve um que ousou duvidar da natureza divina da luz. Segundo ele, a luz provinha de uma das muitas candeias acesas naquele convento. Era um cristão-novo: heresia!
A situação criada com o batismo forçado, em 1497, era explosiva. Qualquer sinal de hipotético judaísmo poderia gerar a animosidade cristã. Na verdade, cristão-novo – converso convicto ou não – permanecia eternamente judeu aos olhos da população maioritariamente cristã.
Foi nesta conjuntura, favorável ao antijudaísmo, que o citado cristão-novo cometeu a imprudência. Mal proferiu a absurda “blasfêmia”, o povo caiu sobre ele, arrastando-o para a rua e agredindo-o barbaramente até cair morto. Ali prostrado no Largo de São Domingos, logo foi identificado pelo irmão, que se debruçou sobre o seu cadáver e gritou lancinantemente: “Quem matou meu irmão?!”. Foi então que a cena grotesca se repetiu e em um ato contínuo foi igualmente executado pelas pessoas enfurecidas, que, rapidamente acendeu uma fogueira e queimou os dois infelizes cristãos-novos.
Em um clima de intolerância crescente, surgiu um frade que proferiu um inflamado sermão anti judaico, enquanto o povo se aglomerava em torno da “redentora” fogueira, aos quais se juntariam mais dois frades dominicanos, Frei João Mocho e Frei Bernardo, exibindo o crucifixo “milagroso” e fazendo apelos sanguinários contra os judeus: “Heresia! Heresia! Destruam o povo abominável!…”.
E assim, como se a razão tivesse fugido a todos – já que segundo acreditavam, os judeus eram responsáveis pela seca, fome e peste – o povo se espalhou pelas ruas de Lisboa, procurando cristãos-novos que passavam desprevenidos, forçando a entrada nas suas casas, capturando aqueles que se haviam recolhido nas igrejas, carregando mortos e vivos para as fogueiras que se acendiam na capital. Foram três dias de terror, pilhagem e carnificina que resultariam em quatro mil mortos. Os frades dominicanos haviam prometido absolvição dos pecados dos últimos 100 dias para quem matasse os “hereges”. Para a barbárie ficar ainda mais sem sentido, até mesmo quem não era judeu, além de mendigos e prostitutas foram mortos em troca das promessas dos frades. Homens, mulheres, crianças e até bebês foram torturados, massacrados e queimados em fogueiras improvisadas no Rossio.
O historiador Damião de Góis relatou assim este horroroso episódio:
“A esta turma de maus homens e dos frades, que sem temor de Deus andavam pelas ruas, concitando o povo a esta tamanha crueldade, se ajuntaram mais de mil homens da terra, da qualidade dos outros, que todos juntos a segunda-feira continuaram nesta maldade com mor crueza e, por já nas ruas não acharem nenhuns cristãos-novos, foram cometer, com vaivéns e escadas, as casas em que viviam, ou onde sabiam que estavam e, tirando-os delas a rasto pelas ruas, com seus filhos, mulheres e filhos, os lançavam, de mistura vivos e mortos nas fogueiras, sem nenhuma piedade e era tamanha a crueza que até nos meninos e nas crianças que estavam no berço a executavam, tomando-os pelas pernas fendendo-os em pedaços e esborrachando-os de arremesso nas paredes”.
Embora tardiamente, o rei castigou duramente o povo de Lisboa: sentenciou os responsáveis pela chacina a penas corporais e à perda dos seus bens a favor da Coroa; mesmo os que não tivessem participado no massacre e no saque perderiam um quinto dos seus bens; suspendeu a eleição dos representantes da Casa dos Vinte Quatro e dos seus quatro representantes à vereação municipal lisboeta; retirou as honrarias da cidade; mandou executar cerca de meia centena de amotinados e os dois frades dominicanos, frei João Mocho e frei Bernardo, verdadeiros instigadores do massacre.
Maldição
Após toda esta tragédia ocorrida inicialmente no Convento de São Domingos, o local ainda passou por outros grandes abalos. O primeiro deles foi em 1531 onde um terremoto arruinou quase completamente o convento. Ele só foi totalmente reconstruído em 1536.
Uma perda ainda maior ocorreu no grande terremoto de Lisboa em 1755, onde grande parte da igreja e, do ainda Convento, foi destruída, incluindo suas ricas bibliotecas, com manuscritos e pergaminhos raríssimos. Passaram-se anos até a reconstrução do local.
Posteriormente, após a expulsão das ordens religiosas em Portugal, em 1834, o Convento de São Domingos passou a ser utilizado apenas como Igreja pela população.
Já em 13 de Agosto de 1959 um violento incêndio destruiu por completo o interior da igreja. O calor era tal que toda a talha dourada ardeu, valiosas pinturas e imagens assim como as pedras e colunas se perderam. Em 1994 a igreja de São Domingos reabriu ao público, sem esconder as marcas do incêndio, com as colunas rachadas.
No largo de São Domingos atualmente vamos encontrar uma homenagem aos Judeus mortos no massacre de 1506, inaugurado em 23 de Abril de 2008. Ali fica também um muro onde encontramos escrito em 34 línguas a expressão “LISBOA, CIDADE DA TOLERÂNCIA”.
Além da sua importância artística, a Igreja de São Domingos destaca-se pela sua herança simbólica. Era daqui que saíam em procissão os condenados à fogueira da Inquisição; e desde finais de 1834 foi a igreja eleita para a celebração dos casamentos e batizados Reais.
Há quem diga que Deus, de tempos em tempos, faz a população de Lisboa se recordar de seus grandes erros, neste local, em uma espécie círculo que parece não ter fim. Na dúvida, entrei e mesmo não sendo católica, fiz uma profunda oração pelas almas que ali foram cruelmente torturadas por pessoas que também estavam com suas almas torturadas pela intolerância religiosa. Que dias assim nunca mais se repitam.
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